Sobre a minha relação com a música

Quando criança por volta dos 7 anos de idade lembro-me que fui a uma festa na casa dos meus padrinhos “Santo” e Sônia . Eles moravam numa vila próxima chamada jardim Felicidade lá em Pirituba. Como era comum na época, a festa se dividia entre as mulheres na cozinha cuidando da comida e os homens bebendo lado de fora. Só o “bate-papo” estava presente em ambos lugares.

Na festa, estive inicialmente entretido com as brincadeiras entre as crianças, mas logo algo diferente me roubou a atenção: começara a cantoria ali do lado de fora, no quintal onde as pessoas sentavam-se nas cadeiras colocadas próximas a uma parede de concreto “chapiscado” ou ficavam ali de pé, nele apoiadas. Então me aproximei e sentei em um banquinho ali disponível.

Não me lembro exatamente quais as músicas eram cantadas, mas me lembro bem do meu pai e tios compartilhando um lindo acordeon de cor vermelha, perolado, mas com suas teclas já um pouco amareladas pelo tempo. Havia um pandeiro de couro de aparência envelhecida também passando de mão em mão, e uma outra pessoa tocava um Violão de cordas de aço, bege e pouquíssimo memorável.

Percebendo meu deslumbre com aquela cena, meu tio Santo me concedeu um par de colheres e mostrou-me batendo-as uma na outra, algo como “tac-tic-tac-tic-tac”, como deveria as tocar. Demorou pouco para que eu pegasse o jeito e pudesse acompanhar a “banda” batendo as colheres por alguns minutos até que de alguma forma o banquinho virou, e eu caí e bati a cabeça no muro de concreto do quintal.

Um fim trágico para o dia que foi, provavelmente, minha primeira Jam Session.


O Violão

Durante minha infância meu pai sempre trazia alguns instrumentos pra gente brincar, como uma flauta doce, uma gaita de brinquedo e até mesmo um apito que simulava um gato miando. Um tempo depois daquela festa, ele surgiu com um cavaquinho de uma cor meio amarelada ao qual não lembro a marca e uma Cítara, que soava horrivelmente.

Brincávamos mais tocando a cítara, pois ela trazia umas “guias” que facilitavam o processo. Era como desenhar com o papel por cima da imagem original. O cavaquinho já era bem mais difícil, então por conta disso meu pai, junto a ele, me deu um de livro de título “O Tabajara“, conhecido na época apenas como “método”, que continha basicamente centenas de acordes possíveis para que o estudante pudesse memorizar. Gostamos muito dos presentes, mas demorou muito pouco para que eu e minha irmã Sandra deixássemos os instrumentos de lado.

O cavaquinho já era bem mais difícil, então por conta disso meu pai, junto a ele, me deu um de livro de título “O Tabajara“, conhecido na época apenas como “método”…

Meu pai vivia como Nômade, de alojamento em alojamento e nem sempre conseguia manter objetos além de documentos pessoais. Por conta disso, deixava suas coisas guardadas na casa da minha tia Luzia, onde eu e Sandra morávamos. Não eram muitas coisas, mas ele deixara guardado um violão velho, para mãos pequenas – talvez da marca Tonante – que ficava ao lado do armário do meu quarto, próximo à parede da janela. Anos depois, aquele canto passou a ser onde eu guardava os meus instrumentos também.

Por volta dos 11 anos eu frequentava a igreja periodicamente, e certa vez anunciaram que aulas de violão seriam ministradas na igreja. Como em casa tinha aquele violão do meu pai lá parado, pegando poeira, com o incentivo da minha tia Luzia resolvi me dar uma chance naquela nova empreitada de tomar aulas de violão. No primeiro dia encontramos lá o Mário, na época com 17 anos, que normalmente tocava na missa e seria nosso professor. A Sandra também participava das aulas, mas o interesse dela estava mais em olhar as pernas do professor do que no Violão, o que não é nenhum segredo pois ela mesma contava isso.

As aulas na igreja duraram por volta de 1 ano, tempo suficiente para dizer que aprendi a tocar razoavelmente bem para um pré-adolescente. Sendo assim, iniciei minhas aulas de violão em uma outra escola de música situada no famigerado “barrancão”, um dos pontos urbanizados mais altos de Pirituba, onde o ônibus “Praça Ramos – Vila Clarice” virava à direita em uma curva fechadíssima e a parada mais próxima após esta curva era exatamente a da escola de música, na época ainda chamada de “Elektrik Band”.

Gostava muito de estudar lá, mas parei em menos de dois anos pois o preço ficara inviável para meus tios pagarem.


O “Espanta-Samba”

Na época em que eu fazia as aulas de violão na “Elektrik”, a febre musical era o samba e o pagode. A Gaviões da Fiel havia há pouco feito seus 25 anos e o samba enredo de sua escola de samba tocava sem parar nas rádios populares. Eu ainda não tinha um gosto musical muito definido; gostava de pagode, rap, sertanejo, alguma coisa de rock/pop nacional e músicas de novelas em geral.

Na escola eu estava na 6ª série e na minha turma, o pagode e o rap eram os ritmos que dominavam. Durante a chamada “hora do recreio”, ficávamos sentados em uma das duas únicas mesas brancas do tipo “refeitório” que haviam no pátio interno do Agenor, não para comer, mas para batucar e cantar todas as músicas do grupo de pagode “Art Popular”, “Um homem na estrada” e “Fim de semana no parque” dos Racionais MCs. O líder da galera era o Adriano “Magrão”, um cara alto e magro que já aos 14 anos media por volta de 1,90 de altura. Maior que seu tamanho, só o talento para batucar naquelas mesas, cantando e chamando a molecada pra acompanhar.

Na minha rua, não era diferente, a maioria da galera estava curtindo rap, samba e pagode e quase todos ouvíamos as rádios Nova FM, Transcontinental e a 105.

…alguns que não acreditavam muito em nós, nos chamavam de “Espanta-Samba”, nome que eu pessoalmente achava bem mais divertido.

Naturalmente me interessei em pegar o cavaquinho e tentar tirar algum som daquilo ali. Por sorte, eu tinha o Tabajara pra me ajudar e por estar aprendendo a tocar violão, ao entender a diferença de afinação dele para o cavaquinho, comecei a identificar os acordes que eram listados no método, mas sem um nome que eu entendesse

Em pouco tempo eu já tocava algumas músicas do Art Popular, do grupo Sensação e é claro, do Fundo de quintal

Passei a marcar presença em todas as festinhas da rua levando meu violão e meu cavaquinho. Eu tocava de tudo, desde o que sabia até o que não sabia, e durante uma dessas festas, alguém sugeriu de formar um grupo de pagode, comigo no cavaquinho. Me recordo que os outros colegas decidiram quem tocaria o que, e que cada um teria que comprar e aprender a tocar o instrumento que escolhera. O grupo ficou assim então: Eu no cavaquinho, o Everton no Pandeiro, o Gil no Repique e o Nilson no tan-tan. Eu tenho quase certeza de que mais alguém tocava o chocalho, e me dói de verdade dizer que não me lembro quem era. O grupo jamais chegou a ter uma discussão sobre o nome, ainda que certo dia me contaram que ele se chamava “De Repente…Samba” mas alguns que não acreditavam muito em nós, nos chamavam de “Espanta-Samba”, nome que eu pessoalmente achava bem mais divertido.

Quase toda noite, nós nos encontrávamos na “pracinha” (uma pequena praça situada na metade da rua Francisco Ursaia) em frente a casa do Nilson, e ensaiávamos sentados no banco de concreto, iluminados pela luz na lua, dos postes e da garagem da casa dele.

Por vezes ao invés de ensaiarmos na pracinha, ensaiávamos no velho “cabo-de-aço”, que ficava na curva que dava acesso a parte de traz da rua, perto de um barranco que desembocava na estrada de ferro então ainda conhecida como “Santos-Jundiai”. Antes do barranco, havia uma cerca de aço partida e enferrujada, onde entre duas barras de ferro posicionadas verticalmente, deitava-se uma viga de madeira longa e grossa lapidada em formato de um banco.

Aquele local servia de lazer para os moradores da rua. Quando criança, durante à tarde, ficávamos ali brincando de “polícia e ladrão”, empinando pipa e fazendo “balãozinho”, brincadeira que consistia em prender um pedaço de plástico redondo enrolando-o em uma pedra e jogando-a para o alto. No ar a pedra e o plástico se separavam, criando um efeito de um pseudo balão caindo. Cheguei a acertar sem querer a cabeça de alguém com essa molecagem. Uma outra brincadeira era, ao ouvir o barulho do trem chegando, correr até a borda do barranco para jogar pedras quando o trem finalmente passasse. Anos depois ao me tornar usuário do trem, vi um cartaz explicando o perigo de dessa brincadeira nada inocente.

Durante à noite, era normal os jovens e os mais velhos ficarem ali no “cabo-de-aço” sentados conversando, inclusive no inverno, quando juntando os restos de móveis entulhados por ali, faziam a fogueira que paulatinamente corroía o piso de asfalto há poucos anos colocado.

Ensaiamos bastante e tocamos em muitas das festinhas da rua, mas o grupo logo terminou, pois aos poucos eu ia começando a me desinteressar por aquele tipo de música enquanto meu interesse pelo Rock aumentava cada vez mais.

Um dia conversando na escola, um colega me apresentou umas músicas da “Legião Urbana”, que conhecia de nome, mas muito pouco musicalmente. Com eu gostei, ele me deu uma fita cassete gravada do Lado A “Músicas para acampamento” da Legião, e do Lado B, “Vamo Bate Lata” ao vivo, dos Paralamas do Sucesso. Gostei tanto do presente que ouvia a fita repetidamente no meu Walkman.

Já não tinha mais volta. Eu estava definitivamente convertido ao Rock n’ Roll e odiando o tipo de música que eu estava tocando. Finalmente para a tristeza da galera do pagode, resolvi sair do grupo.


Da igreja às músicas do capeta

Pela minha rápida evolução com o violão, comecei a participar das missas como músico aos sábados à noite e aos domingo de manhã. Pouco tempo depois com a chamada “renovação carismática” na igreja católica, as cerimônias passaram a contar com bandas, agora com bateria, teclado, guitarras elétricas e baixo. Durante esse processo, aprendi também a tocar bateria, que virou meu segundo instrumento. E claro, além disso eu também gostava bastante de cantar. Um tempo depois, passei a ajudar na regulagem do som. Na época não entendi muito bem essa mudança, mas hoje enxergo como uma promoção para a produção musical, algo que me interessa até hoje.

Participei das atividades músicas da igreja até meus 15 anos. Saí pois descobri que eu estava lá mais pela música do que pela fé.

Pouco antes do meu distanciamento da igreja, em um encontro de jovens, passei a ter amizade com um conhecido da escola Agenor, o Rogério, conhecido na época pelo codinome de Rato. Ele tocava um pouco de bateria, e muitas vezes depois do final da missa de sábado ou do grupo de oração na quinta-feira, ficávamos pelo menos mais uma hora na igreja tocando “músicas do mundo”, e não era qualquer música do mundo; nós tocávamos Raimundos. Não demorou muito para o padre nos proibir de tocar lá.

Durante o ensaio ele chamou o capeta diversas vezes ao microfone

Como a bateria que usávamos e toda a aparelhagem de som eram da igreja, com a “proibição” de tocar Raimundos, o Rato me convidou para que no próximo domingo eu fosse tocar na casa dele. Eu não tinha guitarra então pedi emprestada a guitarra do Mário, que tinha uma da marca “Area Pro II” preta com floyd-rose, de trastes perolados em forma de semi-triângulos e braço confortavelmente estreito. Ela era muito suave de tocar, e ele gentil e loucamente me cedeu-a para que eu então pudesse ir.

Chegando o Domingo, no horário combinado fui até casa do Rato. Ele morava a alguns quarteirões da minha casa, bem perto do ponto de ônibus onde eu normalmente pegava o ônibus “Praça-Ramos” para ir a aula de violão. Cheguei e toquei a campainha. Não me lembro exatamente quem atendeu, mas deve ter sido a Magali, sua mãe ou o Raul, seu pai. Entrei, e fui indicado até o quarto do Rato, onde o ensaio iria acontecer. O seu quarto era pequeno, mas cabia a beliche e o armário, e para aquele dia ainda tinha “socado” a bateria, dois amplificadores de guitarra e uma caixa acústica para a voz.

A breve banda formada ali pelo Rato contava comigo, com o Batista; que tinha uma dentição protuberante e logo lembrava um personagem da “Escolinha do professor Raimundo”; e também com o Djudjo, que era um colega do Rato e coincidentemente, também era um aluno repetente na minha sala da 7a série no Agenor. Para além disso, era um satanista de verdade, daqueles que a gente ouvia falar mal na igreja. Durante o ensaio ele chamou o capeta diversas vezes ao microfone até que a mãe do Rogério, que era muito católica e inclusive organizava os encontros de jovens na Igreja, pediu pra ele parar.

Começamos. A música sugerida foi “For Whom the Bell tools” do Metallica, que eu até então nunca tinha ouvido, pois o mais pesado que eu conhecia era “Será que é isso que eu necessito”, dos Titãs. Lembro que ficamos um tempão ensaiando a do Metallica e depois tentamos alguns outros clássicos como Iron Man e Paranoid do Black Sabbath, mas no fim, o que realmente conseguimos tocar foi Raimundos, pois já o fazíamos na Igreja.

Me reuni com eles para tocar somente mais umas duas vezes, pois eu não tinha uma guitarra e um amplificador para continuar, e era complicado ficar pedindo a guitarra do Mário toda hora, e também por que eu não conhecia nada de heavy metal.

Alguns anos depois, eu e o Rato formamos outra banda, a Kleptomania, mas vou dedicar um texto só para ela, pois apesar das outros grupos que toquei, esta banda foi o primeira que entrei de corpo e alma.

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